quarta-feira, 23 de julho de 2014

aves

       Eu estava tão cansada que tudo o que realmente me interessava fazer era nadar. Mas mesmo com a praia estendida diante de mim como um tapete, tudo o que me permiti fazer foi observar o voo das aves. As aves: senti que nascera para somente admirar os seus voos e nunca para habitar no coração de uma. Eu atirava uma pedra e elas esvoaçavam em todas as direções. Sei que todas elas, de uma forma ou de outra, mesmo aquelas que não possuem o sentido literal de ser-se ave, acabam, mais dia menos dia, por escalar o céu em direção ao sonho. E é precisamente aí que entra o meu papel, ficar a vê-las perderem-se no horizonte e deixarem para trás um estranho rasto de eternidade. As aves: levam nas suas penas todos os sonhos do mundo. Quando me decidi a entrar dentro da água, também eu deixei para trás algo. Um acto contínuo: levanto-me, sacudo a areia e avanço em direção ao mar. Atrás de mim fica a imagem de um tempo em que amava as aves que se insinuavam inalcançavelmente perto. A água gelada batia na minha pele marmórea. Algures num ciclo enevoado do tempo, eu tornei-me leve como espuma. O sal infiltrava-se na minha pele e afastava as minhas sombras para longe. Lá em cima, o sol descia lentamente. Lembro-me de ter pensado que também ele estava cansado e que tudo o que ele queria realmente fazer era nadar.

i.o

quarta-feira, 25 de junho de 2014

o escrito















não me afeiçoo às letras em si
mas à névoa incessante que paira diante dos meus olhos
como um peso morto pendendo no meu pescoço
e só um único gesto de tremor
rasga essa cortina fumegante.
assento as páginas mal escritas enquanto fujo
dos dardos em fogo disparados pelos nódulos da confusão.
enquanto corro vejo claramente,
como a tensão é a matéria que germina na criação.
o tempo, enclausurado na insónia,
é o fruto vermelho de quem escolheu o vício- absurdo este-
de provar as cinzas da própria combustão.
às vezes, não me afeiçoo às palavras em si,
mas ao silêncio calmo que fica, depois da caçada.
iolanda oliveira

quinta-feira, 5 de junho de 2014

quando amanhece, já não sei quem sou


















Parece que ando a dormir com os lobos, 
tudo não faz sentido, fecho os olhos
sinto-me tão pequena, a lua
cheia de crateras e mares e oceanos
                                          não interessa. 

Desaprendi de chorar quando soltei o primeiro uivo
nas àrvores que tinham buracos nos troncos
como nós. 

A saliva escorre das nossas bocas.
desaprendi de mim quando me escrevi em pedra
as promessas que faziam sentido
e tudo agora
                                          não faz. 

A neve gira e gira e gira em torno dos nossos flancos
quando arrefecemos 
e escutamos o som do tempo a passar nos nossos pulsos
dois corações
e meia vida.

Uivas à lua como se ela brilhasse em mim
é tarde quando se solta a tua besta e te rasga o ar
há algo que se dissipa da tua natureza.

Não tenho medo.
guardei os anos dentro de um poço
quando nada fazia sentido e agora tudo
                                          não faz.

iolanda oliveira

sexta-feira, 18 de abril de 2014

homem de bronze



guardas tanta mágoa de um amor mudo que o teu coração se desfolhou. oh... mas vais deixando para trás o silêncio nas ondas que nascem dos teus remos. era assim que eu te via: como um homem metálico, cujo tremor do sorriso nos tingia de um brilho acobreado. um homem de metal navegando o tempo e as estações. pensei, que carregasses nas mãos os calos da ternura. e que nos lábios trouxesses a dormência do Outono, a quieta lembrança da mulher que não os beijou a tempo, que não te acudiu debaixo das àrvores que se desfolhavam como tu. tu, um peregrino que desconhecia os trilhos das próprias mãos, mas que se deitou outrora à sombra das mãos dela. e era assim que eu via esse amor de maçã de verão, tão sublime e distante como se partisses numa nau de cada vez que os vossos olhos se encontravam. o tempo, era uma estrada de terra batida na periferia das emoções; um ciclo empoeirado que te levava incessantemente de volta ao coração da cidade. mas tu, o homem de bronze, sacudias os bolsos que te pesavam de vazio e vias o por do sol como uma saudação: saudando o infortúnio da tua pele tão triste e cálida como ele. e bebias dos seus últimos raios de luz como um amante que olha para trás num último adeus. tu, que todos os dias te desfolhavas de força e expunhas a tua verdadeira pele, homem de bronze. 

iolanda oliveira

domingo, 23 de fevereiro de 2014

beira-mar



















 estar longe dos meus braços
que são os teus;
o perfume a maresia 
junto à costa da tua pele

o mar habita nas córneas 
da tua saudade, como ver partir
um barco para a guerra.
não pude despedir-me da tua boca
         - meu vício.

Ir. 

o estranho pesar do corpo carregando as malas, olhar para trás e verificar que se trouxe tudo.
não falta nada e tudo falta. fechar a porta, 
dias que não serão mais que porção de tempo amarrotada e deitada ao cesto dos papéis. tensão e frio.

meu amor,
vejo a neblina à beira-mar 
quando te transformas em madrugadas quentes;
fumegantes.
o areal dos nossos corpos são
vistas desertas;
delitos salgados,
a fome com que devoramos as algas do tempo 
             - e o tempo voa como uma gaivota.
há dias em que me sinto mais só.

na alvorada
olho o sol que nasce;
de súbito reencontro o âmbar
dos teus olhos que me despedaçam.
sem querer, um tronco chega à praia;
sou eu,
no dia em que te retorno. 

iolanda oliveira 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Desvio












 

preferi crepitar na inconsciência
do que trazer de bandeja na mão
e postura correta aquele pão
de realidade insípida
que se dá de comer aos donos
dos porcos.

- mais uma dose- pede,
ao meu lado,
um bêbedo pior do que eu,
desses embriagados de ressaibo.
ao nosso lado há sempre,
sempre, alguém pior do que nós.

disse a voz de uma avó qualquer,
nos retalhos varridos da memória,
que nos lembrassemos sempre disso:
que a vida não está para os fracos,
que não se pode ficar a beber num tasco,
que há sempre alguém pior do que nós.

- mais uma dose, peço
e o barman varre o balcão com o olhar
e traz a garrafa de âmbar
de onde verte dormência e rouquidão;
alguém fala do noticiário, e das
lamúrias vozes de quem compra o caos.
estou pior do que eles.

acendo o cigarro:
- não pode fumar cá dentro, senhor.

a rua é um lugar dos cães, mas até esses
vivem enjaulados, salivando as suas raivas
infeciosas. não espumo, mas tremo
e crepito. há uma torbulência estranha
e disforme como os rostos.
um colete de forças proteger-me-ia do frio.

a efervescência rítmica dos sentidos
tombou seguidamente 
ao copo- e para o corpo, túmulo 
da inconsciência quebrada e o silêncio
perdido para o ruído raivoso e insone. 

perdi a razão, quando os estilhaços de vidro
pintaram o chão, dizem.
mas como os porcos comi couve
e como os cães vi a noite. 
mas sou louco, certamente,
louco de in-lucidez.

sábado, 19 de outubro de 2013

Supernova

Pousei as chaves na cómoda e libertei-me do casaco húmido da chuva. Chego a casa, e transpiro o lento vazar das ideias através da percepção- ocorrem-me coisas, mas não me ocorre o que elas serão- escuto o tic-tac-tic-tac ensurdecedor do marcador do tempo. Chove torrencialmente lá fora como um comum dia de Outono. 
        Na viagem, observava pela janela do carro a mudança das cores. Tudo indica mudança, tudo numa lenta e gradual transformação cromática- o verde escuro das folhas dando lugar ao castanho avermelhado, o azul cristalino do céu sendo ocupado por disformes e pesados tons cinzentos- eu pergunto-me, quantos anjos se perderão nas nuvens?- recordo-me: haviam-me dito no dia anterior que qualquer que fosse o céu que eu escolhesse olhar, as nuvens por mim pintadas seriam sempre as mais fantásticas. Trouxe então um pedaço desse céu no bolso e no outro, uma ave. Sempre trago uma ave comigo, mas nem sempre prescindo dela para voar. 
        Há mais do que uma lacuna no manto da minha mente, incorrigíveis fendas numa parede já rugosa, se eu fosse céu o ar esquivar-se-ia para fora de mim e da atmosfera escorria do meu sangue. Se fossem as nuvens encarnadas, toda a chuva seria eu. Mas desfaço a mala de viagem, suspirando e descansando por entre explosões solares alucinogénias, luz e calor e toda uma onda de energia avança sob a forma de espectros pelo vácuo do meu corpo e pára na ponta dos dedos, há um formigueiro crescente. Golfadas de ar para manter o entendimento fresco, por momentos deixo de responder à minha consciência e, em vez disso, registo até a mais leve vibração do ar- estas vozes que penetram a nossa compreensão e se guardam para além dela, algures entre a ilusão e o sonho, onde ambas se fundem numa realidade semi-corpórea e inteligente. 
        Escrevo, incessantemente escrevo, escolhendo as palavras como quem planeia uma jogada de xadrez, porém, tão impulsivamente como quem se consome numa paixão arrebatadora e incontestável. O tempo continua parado e anuncia-se a sua retoma. O gato sobe-me para o colo, adormece lentamente na sua vulnerabilidade inconsciente. Da vida, resta-me somente o que me restar e num sôfrego desespero não sei que mais fazer com o que sobra a não ser desperdiçá-lo. Sou uma mera aprendiz do mundo, uma reles leitora de mentes, uma vulgar escrevente de sensações.

                                                                               iolanda oliveira, creio eu