Na viagem, observava pela janela do carro a mudança das cores. Tudo
indica mudança, tudo numa lenta e gradual transformação cromática- o
verde escuro das folhas dando lugar ao castanho avermelhado, o azul
cristalino do céu sendo ocupado por disformes e pesados tons cinzentos-
eu pergunto-me, quantos anjos se perderão nas nuvens?- recordo-me:
haviam-me dito no dia anterior que qualquer que fosse o céu que eu
escolhesse olhar, as nuvens por mim pintadas seriam sempre as mais
fantásticas. Trouxe então um pedaço desse céu no bolso e no outro, uma
ave. Sempre trago uma ave comigo, mas nem sempre prescindo dela para
voar.
Há mais do que uma lacuna no manto da minha mente, incorrigíveis fendas
numa parede já rugosa, se eu fosse céu o ar esquivar-se-ia para fora de
mim e da atmosfera escorria do meu sangue. Se fossem as nuvens
encarnadas, toda a chuva seria eu. Mas desfaço a mala de viagem,
suspirando e descansando por entre explosões solares alucinogénias, luz e
calor e toda uma onda de energia avança sob a forma de espectros pelo
vácuo do meu corpo e pára na ponta dos dedos, há um formigueiro
crescente. Golfadas de ar para manter o entendimento fresco, por
momentos deixo de responder à minha consciência e, em vez disso, registo
até a mais leve vibração do ar- estas vozes que penetram a nossa
compreensão e se guardam para além dela, algures entre a ilusão e o
sonho, onde ambas se fundem numa realidade semi-corpórea e inteligente.
Escrevo, incessantemente escrevo, escolhendo as palavras como quem
planeia uma jogada de xadrez, porém, tão impulsivamente como quem se
consome numa paixão arrebatadora e incontestável. O tempo continua
parado e anuncia-se a sua retoma. O gato sobe-me para o colo, adormece
lentamente na sua vulnerabilidade inconsciente. Da vida, resta-me
somente o que me restar e num sôfrego desespero não sei que mais fazer
com o que sobra a não ser desperdiçá-lo. Sou uma mera aprendiz do mundo,
uma reles leitora de mentes, uma vulgar escrevente de sensações.
iolanda oliveira, creio eu